quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

ÁGUA DOS TEMPOS


Há uma corrente caudalosa
Que me invade a alma
Águas inquietas
em turbulência
Entre margens sinuosas
Em perfeita confluência
Vão libertas e fluidas
Neste leito escondidas...


Sofrem noutras margens
Em completa contra-dança
Sem nunca poderem parar
Vão p’ro mar vem do rio
Levam consigo desafio
Que caudal vão engrossar

Nos tempos se vão renovando
Em constante agitação
As águas serão iguais
A fúria será como as demais
Os tempos ajudam a renovação

Surge assim em turbilhão
Águas em profunda renovação

(paxiano)

PRIMEIRAMENTE


Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos ...
como um cravo.
Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca — e sempre a tua boca — comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.

Eugénio de Andrade, in 'Poesia e Prosa [1940-1980]



Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.

(Eugénio de Andrade)

"Frequentemente tenho longas conversas comigo mesmo, e sou tão inteligente que algumas vezes não entendo uma palavra do que estou dizendo."

(Oscar Wilde)
Imagem de: Godfred Yarek

PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo ...

Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'

MORRER DE AMOR É ASSIM


 Quem morre de tempo certo
ao cabo de um certo tempo
é a rosa do deserto ...

que tem raízes no vento.

Qual a medida de um verso
que fale do meu amor?
Não me chega o universo
porque o meu verso é maior.

Morrer de amor é assim
como uma causa perdida.
Eu sei, e falo por mim,
vou morrer cheio de vida.

Digo-te adeus, vou-me embora,
que os versos que eu te escrever
nunca os lerás, sei agora
que nunca aprendeste a ler.

Neste dia que se enquadra
no tempo que vai passar,
termino mais esta quadra
feita ao gosto popular.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

EIS-ME


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses ...

Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo
[em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'

CANSAÇO


 O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto ou daquilo,
Nem sequer de tudo ou nada:...

Cansaço, assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseja o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre o tudo e o nada isto é, isto...
Para mim só um grande, profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

(Fernado Pessoa)
 





O poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos, tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos, o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.

(José Luís Peixoto)
 


Não...
Não olhes por mim
Sou flor solitária que morre e renasce na sombra
Do teu jardim

E o meu perfume é vento......

Terra
Mar
Viajante no tempo

(Paula OZ)
 
(Desconheço o autor da imagem)

Não perguntes quem eu sou, sou apenas...

Sombra nua, negra, crua, colorida
(onde vou e estou, sigo, choro e sorrio)

Sou destino, sem regras, na solidão do meu vazio...

(casa, viagem, pouso e partida)

Não perguntes o que quero... não sei,
mas sei que te quero
desespero sincero

Não me perguntes... procura-me

(Paula OZ)
Imagem tirada do Google

EU SIMPLESMENTE AMO-TE


Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"


Só se ama com urgência. Só se ama como se numa ambulância, como se no último respiro, como se no último afago. Só se ama com urgência. Só se ama como se acabasse no segundo seguinte. E por isso o segundo, este, exactamente este, é o segundo... final. E amar só é, só tem de ser, uma sequência de segundos finais, uma interminável (mesmo que terminável) sucessão de segundos finais entre quem se ama. Amar é inseguro, amar é ciúme, amar é urgente. Amar – quando é amar - é-te tudo. E é tudo.

Pedro Chagas Freitas
in "EU SOU DEUS"


"O prazer do amor é amar e sentirmo-nos mais felizes pela paixão que sentimos do que pela que inspiramos."

( François La Rochefoucauld)

QUANDO PARTIS-TE,


  nada me pertenceu - nem o vestido indecente
que pedi emprestado para te oferecer os seios, nem
os seios, que eram já teus muito antes do vestido....


O sorriso que devassou brevemente o meu rosto não
me pertenceu; porque ninguém o viu antes de ti,
nem o espelho se convenceu a devolver-mo.

(...)

Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que
acontecias dentro do meu corpo, das outras vi-te abraçar a
solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem
te mantinha vivo. O meu coração, contudo, sempre

te pertenceu - e a mão desesperada que o procura não
sente bater longe do teu peito. E mesmo os poemas todos
que escrevi não me pertenceram, porque essa vida
que pulsava no papel levaste-a tu contigo na hora
em que te foste - e a que tenho agora é mais
branca e vazia do que a morte, não é vida nem nada

que eu queira alguma vez que me pertença."

(Maria do Rosário Pereira)

SE TU VIESSES VER-ME


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços......


Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

(Florbela Espanca)

TERNURA


 Desvio dos teus ombros o lençol,

que é feito de ternura amarrotada,
...

de frescura que vem depois do Sol,

quando depois do Sol não vem mais nada...


Olho a roupa no chão: que tempestade!

Há restos de ternura pelo meio,

como vultos perdidos na cidade

em que uma tempestade sobreveio...


Começas a vestir, lentamente,

e é ternura também que vou vestindo,

para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura anda sorrindo...


Mas ninguém sonha a pressa com que nós

a despimos assim que estamos sós!

(David Mourão- Ferreira)

EU SÓ QUERO


Eu só quero amar alguém
Que seja para mim um verso
Que eu nunca me canse de ler,
Assim só para ter...ler....e reler, ...

Como ao livro que tenho na minha cama,
Marcado com uma flor,
Sempre aberto na página escrita
Com o mais belo soneto de amor!...

(Acácio Costa)

OS AMANTES COM CASA


 Andavam pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Respiravam exaustos como se tivessem
nascido da terra ...

de dentro das sementeiras.
Beijavam-se magoados
até se magoarem mais.
Um no outro eram prisioneiros um do outro
e livres libertavam-se
para a vida e para o amor.
Vivendo a própria morte
voltavam a andar pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Então era a música, como se
cada corpo atravessasse o outro corpo
e recebesse dele nova presença, agora
serena e mais pobre mas avidamente rica
por essa pobreza.
A nudez corria-lhes pelas mãos
e chegava aonde tudo é branco e firme.
Aquele fogo de carne
era a carne do amor,
era o fogo do amor,
o fogo de arder amando-se e por toda a casa,
contra as paredes, no chão.
Se mais não pressentissem bastaria
aquela linguagem de falar tocando-se
como dormem as aves.
E os olhos gastos
por amor de olhar,
por olhar o amor.
E no chão
contra as paredes se amaram e
pela casa andavam como
se dentro das sementeiras respirassem.
Prisioneiros libertados, um
no outro eram livres
e para a vida e para o amor se beijaram
magoando-se mais, até ficarem magoados.
E uma presença rica,
agora nova e mais serena,
avidamente recebeu a música que atravessou de
um corpo a outro corpo
chegando às mãos
onde toda a nudez é branca e firme.
Com uma carne de fogo,
incarnando o amor,
incarnando o fogo,
contra o chão das paredes se amaram
pressentindo que
andando pela casa bastaria tocarem-se
para ficarem dormindo
como acordam as aves.

Joaquim Pessoa, in 'Inéditos'

ESTOU MAIS PERTO DE TI PORQUE TE AMO


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me. ...


Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

NÃO POSSO ADIAR O AMOR


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda ...

sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa
 
(Desconheço o autor da imagem)

AMAR É RARO


Amar é dar, derramar-me num vaso que nada retém e sou um fio de cana por onde circulam ventos e marés. Amar é aspirar as forças generosas que me rodeiam, o sol e os lumes, as fontes ubérrimas que vêm do fundo e do alto, água e ar, e derramá-las no corpo irmão, no cadinho que tudo guarda e transforma para que nada se perca e haja um equilíbrio perfeito entre o mesmo e o outro que tu iluminas. Dar tudo ao outro, dar-lhe tanta verdade quanta ele possa suportar, e mais e mais; obrigar o outro a elevar-se a um grau superior de eminência, fulguração, mas não tanto que o fira ou destrua em overdose que o leve a romper o contrato — o difícil equilíbrio dos amantes! Amar é raro porque poucos somos capazes de respirar as vastas planícies com a metade do seu pulmão; e amar é raro porque poucos aceitam a presença do seu gémeo, a boca insaciável de um irmão que todos os dias o vento esculpe e destrói.

Casimiro de Brito, in 'Arte da Respiração'


O AMOR É O AMOR


O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?

Alexandre O'Neill, in 'Abandono Vigiado'

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
(Desconheço o autor da imagem)

domingo, 19 de janeiro de 2014

BARCO SEM RUMO



À tona da água
Escorre a noite descansada
Das tragédias que assaltam
O normal fluir
dum tempo sem meta
Dum dia frio sem noite
Que se abate sem se ouvir
...

À tona da água
Descem memórias do tempo
fugazes e tardias
E no meu regaço, azado
Recolho-as
Como se fossem...
Angústias do meu passado

À tona da água
Desliza um sorriso fresco
Que não sei de quem é
Alguém distraído
Que o deixou cair
E ficou a boiar...
No meu olhar embevecido

À tona da água navego sem rumo
Aguardando sinal do teu barco sem fumo

(paxiano)

A DIZER OUTRA VEZ


a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes...

últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

Samuel Beckett
Imagem de: Mark Arian.

sábado, 18 de janeiro de 2014

QUEIXA


Toda a noite te esperei.

Quando cheguei
Não estava ainda luar....

E fiquei
A esperar
Que viesses
Como tinhas prometido.

Toda a noite te esperei
e afinal não apareceste.

Fiquei esperando,
Esperando,
E as horas foram caindo,
Uma a uma,
Como gotas de cacimbo.

Entretanto,
Surgiu de trás da Igreja
O disco, em prata,
Da Lua.

Debaixo da cajajeira,
Junto à valeta da rua
E sob a luz que me encanta
Vi nascer a madrugada
Da cor da Semana Santa,
Vi como a noite fugia
E como raiava o dia.

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste…

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste…

Esperei
E desesperei.
Desesperei
E chorei…

Aires Almeida Santos, in POETAS ANGOLANOS (1962)

in ANTOLOGIAS DE POESIA DA CADA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO 1951-1963, Vol. I (ACEI, 1994)

IV


 por vezes crio um deserto só para mim
e sinto-te silêncio esquecido nos meus lábios
por não querer recordar a linguagem do teu corpo
esquecido dentro do meu....


(Paulo Eduardo Campos)

in Poetas da Nossa Terra, Vários autores, Ed. Lua de Marfim, 2013
Imagem de: Liu Yuanshou

PARTO COM OS VENTOS


Esta noite é líquida
nos meus olhos esvaziados
de rumores e saudade....

Fixo o farol e a luz
da vida cúmplice.

Como as gaivotas parto
e regresso
porque este areal é meu.

Nem os búzios perdidos
nas águas profundas me podem
chamar com cânticos e brilhos.

Sou ilha e barco,
tu a margem que espera.

Parto com os ventos.

Sei de uma ilha de ventos
onde os pássaros azuis
da solidão fazem festins
no oceano das águas velozes.
Fiquei na orla branca das ondas,
noveladas como búzios deslumbrados.
Estendida entre brumas
preciso desse silêncio,
das asas abertas do afastamento
de luas desveladas.

o meu olhar de tanto mar
fixou-se numa nuvem de vento.
Dispo-me de gaivotas
quando é o teu olhar com asas
que me solta e agarra,
pois dois sentidos moram
para além de nós,
nos habitam e esperam
sentados aos tropeções
dentro dos nossos corpos.
São aves de muitas ondas,
as que nos beijam.
A hora chegou com o seu gume.
Amor,
volto a partir com os ventos ….

Estas horas
sulcam rios
nos dedos das minhas mãos.
Horas, horas sem fim,
esperarei por ti
até que o mar me traga a tua voz
ou os gritos roucos das gaivotas
me tragam o silêncio desta ilha
tornada espera.
Procuro-te no fim negro do asfalto
onde te vi desaparecer,
após a calma dos objectos partilhados
no balbuciar dos nossos dedos
Horas, horas sem fim,
serei banco de madeira
ou cais de espera.
Vem.

(Lília Tavares)- in PARTO COM OS VENTOS (Kreamus, 2013)
Arte de: Michael  Shapcott

PORQUE SIM


Da janela do meu quarto
(só) vejo o Cruzeiro do Sul.
Quando o desejo de afagar a tua mão
Sob a estrela Polar…
Na janela do meu quarto
Quero abraçar-te para o dia
Respirar os aromas que
O nosso amor noite adentro
Foi tecendo…
Da janela do meu quarto
(só) posso imaginar a estrela polar
E a minha luz de te tocar,
De te amar…
António Piedade, in Palavras Nossas
-Coletânea de novos poetas portugueses (Esfera do Caos, 2011)

NÃO TE AMO


Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
E eu n’alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.
Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!
Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.
Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?
E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.
E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror…
Mas amar!… não te amo, não.
 
(Almeida Garrett), in Folhas Caídas

POEMA DE AMOR PARA NINGUÉM ESPECIAL


 Deixe-me tocá-la com minhas palavras

Pois minhas mãos inertes pendem
...

como luvas vazias

Deixe minhas palavras acariciarem seu cabelo

deslizar tuas costas abaixo

e brincar em teu ventre

pois minhas mãos,

de voo leve e livre como tijolos

ignoram meus desejos

e teimosamente se recusam a tornar realidade

minhas intenções mais silenciosas

Deixe minhas palavras entrarem em você

carregando lanternas

aceite-as voluntariamente em seu ser

para que possam te acariciar devagarinho

por dentro.

(Mark O'Brein) - tradução: Júlia V. - Internauta

Poema que aparece no filme "Seis Sessões" para quem não viu o filme nem conhece a obra de Mark O' Obrein ele teve poliomielite em pequeno e viveu com um pulmão de aço, mexendo apenas a cabeça, mas tendo sua sensibilidade sensorial preservada.

Que passem os minutos, dias e anos...
Todas as estações do tempo!
Que eu viva, qual tolo, todas as ilusões
pueris de sentimento...

Amar-te-ei, em todas as épocas,...

em todo momento
Que passem as águas por muitas pontes
e que debruce a saudade por muitas
serras e montes, amar-te-ei,
como se fosse a primeira vez e única,
apesar das tantas aventuras!
Ainda além deste céu, nas alturas.
Eternamente...
Ainda que outro alguém o tenha
entre lençóis confidentes,
mesmo que os beijos sejam molhados
e quentes,
à parte, nossa alma vaga enamorada,
sobre qualquer prazer da carne ou qualquer
entrega fugaz .
Eternas, apaixonadas
Amar-te-ei, sobre qualquer dor que me pese
o orgulho ferido, o despeito revolvido!
Sobre qualquer punhalada em meu coração,
sobre qualquer distância a nós imputada...
Porque sei, amor de mim , que ainda assim...
Não é pequeno o nosso comprometimento .
Ah! Soubessem todos o tamanho !
Pobre carne, pequeno tempo !

[Wolfgang Amadeus Mozart]

Quantos dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja, para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encon...tro e digo-te vai-te, vai-te embora. Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. Fica. Para sempre. Há em mim uma luta entre o desejo de que te esqueça e o de endoidecer contigo. Porque tu foste de um mundo incorruptível onde o tempo não passa e é aí que tu moras no eterno de ti.

Vergílio Ferreira, in 'Cartas a Sandra'

QUEM NÃO DAVA A VIDA POR UM AMOR?


O essencial é amar os outros. Pelo amor a uma só pessoa pode amar-se toda a humanidade. Vive-se bem sem trabalhar, sem dormir, sem comer. Passa-se bem sem amigos, sem transportes, sem cafés. É horrível, m...as uma pessoa vai andando.
Apresentam-se e arranjam-se sempre alternativas. É fácil.
Mas sem amor e sem amar, o homem deixa-se desproteger e a vida acaba por matar.
Philip Larkin era um poeta pessimista. Disse que a única coisa que ia sobreviver a nós era o amor. O amor. Vive-se sem paixão, sem correspondência, sem resposta. Passa-se sem uma amante, sem uma casa, sem uma cama. É verdade, sim senhores.
Sem um amor não vive ninguém. Pode ser um amor sem razão, sem morada, sem nome sequer. Mas tem de ser um amor. Não tem de ser lindo, impossível, inaugural. Apenas tem de ser verdadeiro.
O amor é um abandono porque abdicamos, de quem vamos atrás. Saímos com ele. Atiramo-nos. Retraímo-nos. Mas não há nada a fazer: deixamo-lo ir. Mais tarde ou mais cedo, passamos para lá do dia a dia, para longe de onde estávamos. Para consolar, mandar vir, tentar perceber, voltar atrás.
O amor é que fica quando o coração está cansado. Quando o pensamento está exausto e os sentidos se deixam adormecer, o amor acorda para se apanhar. O amor é uma coisa que vai contra nós. É uma armadilha. No meio do sono, acorda. No meio do trabalho, lembra-se de se espreguiçar. O amor é uma das nossas almas. É a nossa ligação aos outros. Não se pode exterminar. Quem não dava a vida por um amor? Quem não tem um amor inseguro e incerto, lindo de morrer: de quem queira, até ao fim da vida, cuidar e fugir, fugir e cuidar?

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

(...)
Vou-te mordendo — voraz
numa doença
bebendo em delírio o que me fazes.

Maria Teresa Horta, in "As palavras do corpo".


Não, não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro.

(Caio Fernando Abreu)
 
A cura para tudo é sempre

água salgada:

o suor,...


as lágrimas

ou o mar.

(Isak Dinesen)

AQUELES OLHOS BRILHANTES SÓ DESEJAVAM POESIA


Era encantador perceber cores nas palavras.
Ela conseguia sentir o cheiro das histórias, como se elas fossem estações do ano.
(…)...


(Renas Barreto)
Imagem de: Godfred Yarek

EU ONTEM VI-TE


Eu ontem vi-te…
Andava a luz
Do teu olhar,...

Que me seduz
A divagar
Em torno de mim.
E então pedi-te,
Não que me olhasses,
Mas que afastasses,
Um poucochinho,
Do meu caminho,
Um tal fulgor
De medo, amor,
Que me cegasse,
Me deslumbrasse
fulgor assim.

Ângelo de Lima, in Poesias Completas (Assírio & Alvim, 1991)

ETERNA DÚVIDA


Como fazer um caminho
já trilhado
Um viso do monte arredondado...

A linha que delimita a luz
da penumbra
E o espaço entre o bem e o mal
que nos foi confiado

Como sentir o amor como dádiva
Calor como aconchego delirante
Ternura como dado carinhoso
Se nossos corpos exauridos
no desalento
Se encontram tão ávidos mas distantes

Como sentir o latejar do coração
Se a tua luz está tão longe
Dum ser que pode não ser
Quando apenas somos sim e não

Há uma fuga breve para o infinito
Quando nem sabemos quem o tenha dito

(paxiano)
Fotografia de: Yannine

O NOSSO MUNDO


Eu bebo a vida, a vida, a longos tragos
Como um divino vinho de falerno!
Pousando em ti o meu amor eterno ...

Como pousam as folhas sobre os lagos...

Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!

A vida, meu amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erquida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, amor?...As nossas bocas juntas!...

(Florbela Espanca)

Morrer exige duas pessoas. Morrer exige sempre duas pessoas. A que morre e a que aceita essa morte. Estás aqui e é contigo que quero passar os meus dias. Lamento, mas nunca terás a minha despedida. Terás as minhas palavras, todos os dias co...mo sempre foi todos os dias. Terás os meus olhos fechados nos teus, como sempre os teus fechados fechavam os meus. Lembras-te de que assim que adormecias eu adormecia também? Como se estivéssemos ligados por um qualquer mecanismo biológico. Tu dizias: vou dormir. E eu nem dizia nem deixava de dizer. Simplesmente te olhava, lentamente, a fechares os olhos – e, ao mesmo tempo, fechava, lentamente, tão lentamente como o teu lentamente, os meus. E assim adormecíamos, todos os dias e todas as noites, juntos, verdadeiramente juntos, a dormir o mesmo sono. Nem a dormir deixávamos de estar juntos. Se sonhava, sonhava-te. Sentia-te por dentro de tudo o que vivia. Eras a parte de fora de mim – o corpo que me pertencia como me pertencia a vida. Nem penses que te permito morrer. Morrer exige duas pessoas.
Onde estás que preciso de viver outra vez?


(Pedro Chagas Freitas)


O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma ...

Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

(Fernando Pessoa)


Se a tua boca feita cálice se encher de amor eu hei-de bebê-lo de um só trago...

©JGD= José Gabriel Duarte.

O AMOR


O AMOR, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar....


Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

(Fernando Pessoa)

FUMO


Longe de ti são ermos os caminhos

Longe de ti não há luar nem rosas
...

Longe de ti há noites silenciosas

Há dias sem calor, beirais sem ninhos


Meus olhos são dois velhos pobrezinhos

Perdidos pelas noites invernosas

... Abertos sonham mãos cariciosas

Tuas mãos doces, plenas de carinho


Os dias são outonos: choram, choram

Há crisântemos roxos que descoram

Há murmúrios dolentes de segredos


Invoco o nosso sonho, entendo os braços

e é ele oh meu amor, pelos espaços

fumo leve que foge entre os meus dedos.

(Florbela Espanca)

O BRILHO DA SAUDADE


Saudade, palavra mastigada
Em gesto magoado
Grito contido, abafado
Dor sentida...

Em circulo longo
fechado

Saudade palavra proferida
Na casa fechada
Dor dormente
Calada
Pensamento distante
diante...
Duma aurora apagada

Saudades são o brilho
das lágrimas
Que cobre a cabeça
de lenço branco
Não se finge nem se esconde
Mastiga-se, porque é duro
Sofre-se, porque dói tanto...

Estranha roupagem de manto
Que esconde a alma nua
Antes que alguém
a devasse
Aconchega-se ao peito
Para que ninguém a destrua

(paxiano)


"Fossem meus os tecidos bordados dos céus,
Ornamentados com luz dourada e prateada,
Os azuis e negros e pálidos tecidos
Da noite, da luz e da meia-luz,
Os estenderia sob os teus pés.
...


Mas eu, sendo pobre, tenho apenas os meus sonhos.
Eu estendi meus sonhos sob os teus pés
Caminha suavemente, pois caminhas sobre meus sonhos."


(William Butler Yeats)
Arte de: Dorina Costras

SE TU VIESSES VER-ME


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços... ...


Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

(Florbela Espanca)