sexta-feira, 12 de agosto de 2016

TERNURA

Desvio dos teus ombros o lençol, 
que é feito de ternura amarrotada, 
da frescura que vem depois do sol, 
quando depois do sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade! 
Há restos de ternura pelo meio, 
como vultos perdidos na cidade 
onde uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente, 
e é ternura também que vou vestindo, 
para enfrentar lá fora aquela gente 
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós 
a despimos assim que estamos sós!

(David Mourão-Ferreira)- in "Infinito Pessoal
Arte de: Andrius Kovelinas

PRESÍDIO

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo 
Que dizer do pescoço, às vezes mármore, 
às vezes linho, lago, tronco de árvore, 
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?... 
E o morno gradeamento dos teus braços? 
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne: 
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida; 
onda de pedra em cada reencontro; 
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono... 
Nem só de carne é feito este presídio, 
pois no teu corpo existe o mundo todo!

(David Mourão-Ferreira) - in “Obra Poética”
Arte de: Charles Amable Lenoir

E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses 
E por vezes os meses oceanos 
E por vezes os braços que apertamos 
nunca mais são os mesmos    E por vezes 

encontramos de nós em poucos meses
 
o que a noite nos fez em muitos anos 
E por vezes fingimos que lembramos 
E por vezes lembramos que por vezes 

ao tomarmos o gosto aos oceanos
 
só o sarro das noites      não dos meses 
lá no fundo dos copos encontramos 

E por vezes sorrimos ou choramos
 
E por vezes por vezes ah por vezes 
num segundo se evolam tantos anos 

(David Mourão-Ferreira) - in 'Matura Idade'
 
Arte de: Andrzej Malinowski


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A MORTE PELA SOLIDÃO

Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar, percebe-se o desconforto da ausência porque o quadro mais à esquerda e o aparador mais longe, sobretudo o quadro mais à esquerda e o buraco do primeiro prego, em que a moldura não se fixou, à vista, fala-se de maneira diferente esperando uma voz que não chega, come-se de maneira diferente, deixando uma porção na travessa de que ninguém se serve, os cotovelos vizinhos deixam de impedir os nossos e faz-nos falta que impeçam os nossos.

(António Lobo Antunes)- in 'Não é Meia Noite Quem Quer'
Arte de: Francine Van Hove

SEGREDO

Não contes do meu vestido
que tiro pela cabeça
Nem que corro os cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu novelo
nem da roca de fiar
Nem o que faço com eles
a fim de te ouvir gritar


(Maria Teresa Horta) - in MINHA SENHORA DE MIM (Publ. D. Quixote, 1971),
in VARIAÇÕES SOBRE UM CORPO (Ed. Inova, 2ª ed, 1973), in POESIA REUNIDA (Publ. D. Quixote, 2009)

MORRER DE AMOR


Morrer de amor
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso

(Maria Teresa Horta)
Arte de: Graça Martins

DE FRUTA FEITO

O corpo
É pêssego
Tangerina
E é limão
Tem sabor a damasco
e a alperce
Toma o gosto da canela
de manhã
e à noite a framboesa que se despe
De maçã guarda o pecado
e a sedução
Do mel
o açúcar que reveste
Do licor
a febre no seu rasgão
me invade me inunda e me apetece
Mergulho depressa a minha boca
e bebo a sede
que em mim já cresce
Delírio que me enche
de prazer
tomando o ponto num lume que humedece
Devagar mexo sem tino
as minhas mãos
Provando de ti
o que de ti viesse
O anis do esperma
o doce odor do pão
que o teu corpo espalha e enlouquece


(Maria Teresa Horta)
Arte de: Andrzej Malinowski

PALAVRAS


Palavras leva-as o vento
e os “escritos” também.
Importantes são os momentos
em que me fazes sentir bem.

(serra_ da_ lua)

SONETO DO AMOR


Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma… Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas…
E que os meus flancos nus vibrem no enleio

Das tuas pernas ágeis e delgadas.
E em duas bocas uma língua…- unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois…- abre os olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada…
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

(José Régio)