quarta-feira, 19 de abril de 2017

DESPEDIDA


Uma harpa envelhece.
Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores
sonham junto às estátuas de treva.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança.
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se
foi amor.
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das
ruínas,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus.
Uma estrela caía.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do
sul, a sua extrema dor anoitecida.
Não vens jamais.
O teu rosto é a relva mutilada dos passos em que me
entristeço, a absoluta condenação.
Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
no centro desta cidade.
Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
as tuas folhas de outubro.
Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
a nudez de quem sangra à vista das catedrais.
O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esta música é quase o vento.

(José Agostinho Baptista) - in “Paixão e Cinzas” 

O VERÃO


Estás no verão,
num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre
a duna.
Estás em mim,
nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome
pensas:
teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,
sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.
És o esplendor do dia,
os metais incandescentes de cada dia.
Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces
o ardor das maçãs,
as claras noções do pecado.
Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos
meus anos.
Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os
rituais que previ.
Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em
ti e inclinam-se.
Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.
Doce e cruel é setembro.
Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca.

(José Agostinho Baptista) -in “Paixão e Cinzas"

terça-feira, 11 de abril de 2017

O 1.º RECITAL SEM "MINHA AMADA"


Soneto de amor
Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma… Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas…
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua…- unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois…- abre os olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada…
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

(José Régio)

segunda-feira, 10 de abril de 2017

DE UM POEMA


Não tenho medo de sofás vazios
 ficam na sala da minha lembrança
 como adereços de uma vida acabada 
 Desde que te esqueci revive a esperança 

 Agora tenho outro à porta em certos dias
 Deixo-o entrar levo-o para a minha cama
 e passo-lhe a mão pelos cabelos 
 como tu me fazias 

 Gosto de ti como de um quadro de um poema
 que o tempo torna nossos pessoais 
 Fazes parte de mim e tudo o mais
 já está esquecido. Longe e acabado como tu. 

(Ulla Hahn)
Poema encontrado no Blog: Primeiramente

O LADO ERRADO DA NOITE



   Às vezes apetece-me desejar a mim mesmo boa-noite, 
antes de me virar sobre o meu lado direito,
que é o lado em que sempre penso trazer o coração 

(João Miguel Fernandes Jorge )


domingo, 9 de abril de 2017

FESTA DOS SENTIDOS


Esse vaivém compassado de suor e gemidos
tem a graça de um bailado, é a festa dos sentidos.

(serra da lua)
Photography:  Laura Makabresku

LEILÃO


Troco mil abraços por dois beijos
e  uma fonte de desejos.

(serra da lua)
Photography: Laura-Makabresku

ROMANCE INGÉNUO DE DUAS LINHAS PARALELAS

Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito a infinito
Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.
Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
“Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim…!
Diz a outra: “Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!”
Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.
Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

(José Fanha)
Imagem Google