sexta-feira, 26 de setembro de 2014

COMO É QUE...


Como é que eu,
ouvindo tão mal, distingo
o teu andar desde o princípio do corredor?...

Como é que eu,
vendo tão pouco, sei
que és tu chegas, conforme a luz?

Como é que eu,
de mãos tão ásperas, desenho
a tua cara mesmo tão longe dela?

Onde está
tudo o que sei de ti
sem nunca ter aprendido nada?

Serei ainda capaz
de descobrir a palavra
que larga o teu rasto na janela?

(Que seria de nós
se nos roubassem os pontos de interrogação?)

(Mário Castrim)

Arte de: Fabian Perez

Porque de uma coisa a gente sabe, a vida é injusta e quem devia ficar sempre vai.

(Desconheço o autor)

Arte de: Eduardo arguelles

Um homem jamais pode entender o tipo de solidão que uma mulher experimenta. Um homem se deita sobre o útero da mulher apenas para se fortalecer, ele se nutre desta fusão, se ergue e vai ao mundo, a seu trabalho, a sua batalha, sua arte. El...e não é solitário. Ele é ocupado. A memória de nadar no líquido amniótico lhe dá energia, completude. A mulher pode ser ocupada também, mas ela se sente vazia. Sensualidade para ela não é apenas uma onda de prazer em que ela se banhou, uma carga elétrica de prazer no contacto com outra. Quando o homem se deita sobre o útero dela, ela é preenchida, cada ato de amor, ter o homem dentro dela, um ato de nascer e renascer, carregar uma criança e carregar um homem. Toda vez que o homem deita em seu útero se renova no desejo de agir, de ser. Mas para uma mulher, o clímax não é o nascimento, mas o momento em que o homem descansa dentro dela."

(Anäis Nin)


as palavras preenchem abismos. constroem pontes de madeira ou aço fino. somos todos em forma de palavras. as palavras machucam, doem, cortam. (…) qualquer palavra é mais do que uma palavra. há palavras sonoras e palavras murmúrios. palavras meigas e palavras bruscas. umas suplicam, outras arrepiam. em algumas podemos confiar, mas só em algumas. em geral revelam o que outras apressadamente escondem.
(Pedro Paixão)

QUEM TE PUDESSE VER NA INTIMIDADE


Quem te pudesse ver na intimidade
ondulando nas chamas do desejo,
podia ver aquilo que eu só vejo:
um diabo vicioso em liberdade....


E quem te vê, assim, em sociedade,
frágil e doce como é o poejo,
corando simplesmente com um beijo,
não poderá saber qual a verdade:

se és uma, se és outra, se és nenhuma,
se tudo em ti é feito por medida,
se és talhada em basalto ou se és de espuma.

Mas nem que nisso gaste toda a vida,
eu hei de descobrir-te. Ver-te, em suma,
na minha cama nua e não despida.

 (Joaquim Pessoa) - in Sonetos Eróticos Irónicos - Sarcásticos - Satíricos-
-de Amor - Desamor - de Bem - de Mal Dizer

Arte de: Arthur Braginsky

UM QUALQUER OUTONO


Os dias vêm...
Os dias vão...
O orvalho cristalino cai na caruma,
chuvisca sobre a folhagem outonal,...

as azáleas, os lírios brancos.

O vento sopra em carícias
e no ar agitam-se folhas secas
em nostálgicos tons castanhos
que atropelam o gélido chão.

Nesta passagem pelo tempo
tudo me cheira a ti...
E perdido nos teus aromas
ganhas-me o céu e o horizonte
deste Outono esquecido
nos teus carinhos
que habitam em mim.

(António Carlos Santos)

  Poema do livro: da Geometria do Amor
Foto de: Vlademir Mayakovsky



LÁGRIMA


Dos olhos me cais,
redonda formosura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada....

Regressas à água
mais pura do dia,
obscuro alimento
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.

(Eugénio de Andrade)


Que tudo venha assim, no silêncio, devagar, sem fazer alarde. Leve como uma folha que cai no outono e intenso como o calor do verão.

(Maíra cintra)

Arte de: Ricardo Fernández Ortega

HÁ UM PEQUENO SISMO


Há um pequeno sismo em qualquer parte
ao dizeres o meu nome.

Elevas-me à altura da tua boca...

lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera!

 (Eugénio de Andrade)

Fotografia de: Flor Garduno

ENTARDECI


Hoje entardeci assim,
feito vento e brisa,
feito perfume e aroma:
fui momento,...

interrupção
e tatuagem no tempo.

Escalei o íntimo
e lá bem alto e longe
pernoitei...
... na serenidade da tua noite.

 (António Carlos Santos)

Poema do livro: da Geometria do Amor

sábado, 13 de setembro de 2014

NOITE QUE ME SOMBRA


Queria traduzir os silêncios
que te brotam entre os dedos,
enganar os compassos mortos,
soltar as vontades presas
e costuradas no parapeito do teu coração.

Queria beijar essa boca 
que só em prova se sente,
chover no molhado do teu cheiro
e acender o fogo que sopra o amor
na ternura dos lencóis de cetim.

Queria fazer outro caminho
contigo, e no teu corpo,
e colher frutos de êxtase
num pomar de carinho.

Queria amanhecer contigo
e nas brechas do desalinho do tempo,
dissolver o sono que me roubas,
porque... é tanta a noite
que me sobra nos braços!


Poema do livro: da Geometria do Amor

MEU AMOR QUE TE FOSTE SEM TE VER


Meu amor que te foste sem te ver 
que de mim te perdeste sem te amar 
quem sabe se outra vida tu vais ter 
ou se tudo se perde sem voltar 

ou se é dentro de mim que tem de haver 
tanta força no meu imaginar 
que o poeta que é Deus o vá reter 
e te dê vida e faça regressar 

para de novo o sonho desfazer 
num contínuo surgir e retornar 
ao nada que dá ser ao que é querer 
ao fado que só dá para se dar 

por tudo estou amor e merecer 
o que venha para eu te relembrar 
só adorando o nada pretender 
só vogando nas águas de aceitar. 

(Agostinho da Silva) - in 'Poemas'

ÉS LINDA


És linda. E nem sabes quantos pedaços de beleza tive de juntar para chegar a esta conclusão. Para te construir, tive de misturar a conspiração das searas com a tristeza do choupo, a inquietação da cotovia com o cheiro lavado do vento do ocidente. E a firmeza repartida dos livros, com a alegria explosiva dos miosótis e a luz escura das violetas. Juntei depois um pouco de ansiedade das estrelas, a paciência das casas à beira da falésia, a espuma da terra, o respirar do sul, as perguntas de gesso que se fazem à lua. Acrescentei-lhe a canção das margens e pequenos pedaços da angústia do olhar. Não esqueci a intimidade do frio nem a dor branca que habita o coração dos muros. Por fim, deitei na tua pele o sono dos alperces, aos teus músculos prometi a violência das cascatas, no teu sexo acordei a memória do universo. 
A tua beleza está no meu desejo, nos meus olhos, na minha desigual maneira de te amar. És linda, repito. Mas tenta não encarar o que te digo como um elogio.
(Joaquim Pessoa) - in 'Ano Comum'


As almas encontram-se nos lábios dos enamorados."

(Percy Bysshe Shelley)

À FLOR DA PELE


à flor da pele, te sinto e vejo

poros dilatados… desejos

mãos, corpos, olhares…

lábios secos… colados…abertos

respirando juntos… arfando…

caído em teus braços… amando…

… na flor da tua pele

(Jorge Martins)


Não fosse a tua boca
água nua esperando um barco
e morreria eu de amar,
e morrerias tu sem mar.

(Mia Couto)


SONHO



Teria passado a vida 
atormentado e sozinho 
se os sonhos me não viessem 
mostrar qual é o caminho 

umas vezes são de noite 
outras em pleno de sol 
com relâmpagos saltados 
ou vagar de caracol 

quem os manda não sei eu 
se o nada que é tudo à vida 
ou se eu os finjo a mim mesmo 
para ser sem que decida. 

(Agostinho da Silva) - in 'Poemas'

Arte de: Konovalovas Eugenijus

TUAS MÃOS


Nas tuas mãos, a vida
deixa de ser uma corda tensa
e um sal de dor
que embriaga o tempo
na torrente das águas.


Nas tuas mãos, a esperança
é um grito sem sufoco
num fogo precioso e potente
do vendaval que somos,
na urgência do momento.

Da tuas mãos firmes vem o Sol
do abraço,
das vitórias,
e do sonho

que mora no regaço!

Mãos, que tecem em fios de seda

a cumplicidade,
o alento,
a força
e as asas da serenidade!

Das tuas mãos brota a ilusão
que serpenteia na poeira fria,
feita hino de sopro e vento
nos recantos do tempo
ao amparar e recostar sorrisos...


(António Carlos Santos)
Poema do Livro: da Geometria do Amor