quinta-feira, 15 de novembro de 2018

DAVA A VIDA PARA TE APERTAR CONTRA O MEU PEITO

Nunca te vira tão linda e sedutora ao mesmo tempo como ontem à noite. Dava a vida para te apertar contra o meu peito. Diz-me, era o amor que eu te inspiro que te fazia assim tão bela? Seria a paixão que me abrasa que te tornava tão atraente a meus olhos? Bem viste: não podia deixar de olhar para ti, nem de beijar a candeiazinha de oiro. Quanto tu saíste tive vontade de me prosternar a teus pés e de te adorar como a uma divindade. Ah! Se tu me quisesses metade do que eu te quero! Deste volta à minha pobre cabeça; repara no mal que me fizeste querendo-me como me queres. Às oito, esperar-te-ei numa ansiedade.

(François Chateaubriand) - in ' Carta à Condessa de Castellane (1823)'

sábado, 27 de outubro de 2018

HÁ NA INTIMIDADE UM LIMIAR SAGRADO


Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor –
mesmo que no silêncio assustador
se fundam os lábios e o coração se rasgue de amor.
Onde a amizade nada pode
nem os anos da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.
Quem corre para o limiar é louco,
e quem o alcançar é ferido de aflição.
Agora compreendes porque já não bate,
sob a tua mão em concha, o meu coração.

(Anna Akhmátova )

Arte de Bogdan Prystrom

MISTÉRIO


O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.

(Affonso Romano de Sant’Anna)


A lembrança dos teus beijos
Inda na minh’alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desaparecido
Revive numa saudade!

Florbela Espanca
Foto de Olivia Bee

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

ENVOLVE-ME, COMO SE AS TUAS MÃOS FOSSEM ASAS DE ANJO


Que os teus braços me envolvam como se as tuas mãos na minha cintura fossem asas de anjo. Toca-me mansamente e leva-me ao som da melodia sedutoramente envolvente. Leva-me para espaços inebriantes onde as tuas mãos me amparam nos sons musicais suaves e entontecedores que nos cadenciam os passos ao ritmo que nos leva, sem gritos, sem memórias, sem apelos que provocam e seduzem como se o ontem não tivesse acontecido.
Há tanto ritmo no meu corpo e há tanta sedução em ti. Vem comigo alegrar a vida ao compasso da melodia que nos une, quero ser a rosa que te prende com a sua fragrância. A valsa parou e nós paramos, sem som e sem magia sentimos a paixão que nos segreda. Comove-me a ligeireza do teu toque acetinado,mas não há, efectivamente, amor maior do que aquele que nos sabe agarrar, prender, enfeitiçar com um sorriso, um olhar e um toque quase imperceptível que nos abre o coração.

(Maria Elvira Bento)

terça-feira, 21 de agosto de 2018


com passos de nevoeiro saíste de mim e disseste
agora vou morrer noutro corpo
para que nunca mais tenha na minha pele o pânico
das madrugadas que me levavam ao remorso
de acordar no mais fundo de ti

saíste com passos de nevoeiro
e disseste desculpa ser assim
e eu nem respondi porque sabia
que não eras tu que desaparecias mas apenas
o que em teu nome um dia tinha vindo
para que eu não morresse tão longe do lugar do amor

(Alice Vieira)- Poema do livro "Dois Corpos Tombando na água"

Fotografia de: Black White


Não tardará a chegar ao fim
 este agosto que te viu passar 
 com a luz a teus pés. 
 Somos eternos, dizias.
 Eu pensava antes na danação da alma
 ao faltar-lhe o alimento que lhe trazias.
 Agora a cidade
 vive do peso incomensuravelmente morto
 dos dias sem a tua presença. 
 Deixo a mão correr sobre o papel 
 tentanto captar o eco de uma palavra, um sinal, 
 e quem em qualquer parte cintila,
 e confia ao vento o segredo da nossa tão precária eternidade.

(Eugénio de Andrade)

Arte de: karen Hollingsworth

sábado, 30 de junho de 2018

SOU A TUA CASA


Sou a tua casa, a tua rua, a tua segurança, o teu destino. Sou a maçã que comes e a roupa que vestes. Sou o degrau por onde sobes, o copo por onde bebes, o teu riso e o teu choro, o teu frio e a tua lareira. O pedinte que ajudas, o asilo que te quer acolher. Sou o teu pensamento, a tua recordação, a tua vontade. E também o artesão que para ti trabalha, o medo que te perturba e o cão que te guia quando entras pela noite. Sou o sítio onde descansas, a árvore que te dá sombra, o vento que contigo se comove. Sou o teu corpo, o teu espírito, o teu brilho, a tua dúvida. Sou a tua mãe, o teu amante, o marfim dos teus dentes. E sou, na luz do outono, o teu olhar. Sou a tua parteira e a tua lápide. Os teus vinte anos. O coração sepultado em ti. Sou as tuas asas, a tua liberdade, e tudo o que se move no teu interior. Sou a tua ressaca, o teu transtorno, o relógio que mede o tempo que te resta. Sou a tua memória, a memória da tua memória, o teu orgulho, a fecundação das tuas entranhas, a absolvição dos teus pecados. O teu amuleto e a tua humildade. Sou a tua cobardia, a tua coragem, a força com que amas. Sou os teus óculos e a tua leitura. A tua música preferida, a tua cor preferida, o teu poema preferido. Sou o que significas para mim, a ternura que desagua nos teus dedos, o tamanho das tuas pupilas antes e depois de fazer amor. Sou o que sou em ti e o que não podes ser em mim. Sou uma só coisa. E duas coisas diferentes.

(Joaquim Pessoa)- in "Ano Comum"

DEIXA-ME FALAR-TE DE AMOR

Nesta era em que tudo é fabricado, em que nada é natural, em que nada é puro; em que os primeiros beijos se trocam por telemóvel, se fala por sms e os ditos «encontros românticos» acontecem no cinema, entre um balde de pipocas e um copo de coca-cola, nesta era, que já não é minha, já não é tua, já nem é nossa; deixa-me falar-te de amor. Não quero falar deste «amor» novo, feito de «roda-bota-fora», que nasce podre e é vazio. Não te quero falar do amor para passar tempo, que se joga na Internet; nem daquele que se conhece num bar ou numa discoteca.

Não: deixa-me falar-te de amor como o conheço, da mesma forma lamechas e (hoje) tão fora de moda; a mesma que te ensinaram os teus pais ou os teus avós; como era antigamente, quando passeavam junto ao rio, por vezes de mãos dadas, e coravam ainda, se encontravam alguma cara conhecida. Deixa-me falar-te do amor que me ensinaste. O amor que me ensinaste começou por um acaso, porque, por acaso, eu estava sozinha e tu também. O amor que me ensinaste não foi cozinhado nem confecionado a propósito.

No nosso amor, tu dás-me a mão e eu coro; convidas-me para sair e eu hesito; brincas com os meus caracóis e eu gosto; bebemos chá e ficamos ébrios; passeamos à beira-rio e pode ser que nos beijemos. No nosso amor, não somos só amantes, mas somos cúmplices. E companheiros. Olhas para mim e lês-me nas entrelinhas. Olho para ti e sei-te de cor. Sorrio e mergulhas nesse sorriso. Abraças-me e absorves-me inteira. Dizes-me «amo-te» e eu acredito.
O amor que me ensinaste é puro, é natural, é biológico, sem corantes nem conservantes. Mas deixa-me contar-te um segredo: nesta era, que já não é minha, já não é tua, já nem é nossa; o nosso amor, ainda encanta!


(Ana Rita da Silva Freitas Rocha) - in "Textos de Amor – Museu Nacional da Imprensa"


O AMOR


As palavras são barcos
e eles se perdem assim, de boca em boca,
como neblina no nevoeiro.
Eles carregam suas mercadorias para conversas
sem encontrar um porto,
A noite que os pesa como uma âncora.

Eles devem- se acostumar a ficarem velhos 
e viver com paciência de madeira
usado pelas ondas,
para se decompor, para ser danificado lentamente,
até o armazém de rotina
o mar chega e mergulha-os.

Porque a vida entra em palavras
como o mar em um barco,
o tempo cobre o nome das coisas
e isso leva à raiz de um adjetivo
o céu de uma data,
a varanda de uma casa,
a luz de uma cidade refletida em um rio.

É por isso que, nevoeiro a nevoeiro,
quando o amor invade palavras,
Bata suas paredes, marque nelas
os sinais de uma história pessoal
e deixa no passado os vocabulários
sensações de frio e calor,
noites que são noite
mares que são o mar,
caminhadas solitárias com extensão de frase
e parou trens e músicas.

Se o amor, como tudo, é uma questão de palavras,
Abordar seu corpo era criar uma linguagem.

(Luis García Montero)