domingo, 19 de abril de 2020


Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima — eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram. 

(Herberto Helder)
Foto de: Cezary

Carta de Marear


Não há corpo igual. Não há cheiro nenhum no mundo que colmate o meu vício por ti. Não há tragédia igual. Drama incorruptível.
O tamanho de tudo, encaixe perfeito, a dimensão do conjunto e a distância entre opostos.
O que aporto eu? Flores. Mecanismos para deliciar. Sorrisos repartidos ao pôr-da-lua. Fazer ver a leveza do mundo, afinal. São flores que eu aporto. A minha caneta, o meu lápis, a tua vida no meu caderno-para-sempre. Votos de mar a vida inteira.
Leva-me. Está a ficar escuro. Tenho tudo tão pertinho.
Há uma pornografia íntima nisto nosso. Dá água na boca.
Segura-me. Musa.
Porque a pele.
Porque o rosto e as minhas mãos descendo.
Porque nós.
Não fiques, mas não vás. Avião outra vez. Porque tu.
O meu anel está a arder.
Tudo tão muito e eu a tremer como sempre.
A minha esperança é azul. Propagação. Níveis do Inferno.
Flores de Jacarandá no chão.
Gostava de me decifrar. Perdi o relógio, perdi a caneta, não perdi o anel. Ele arde-me.
Era isso! A faísca. No caos, a faísca. Tu. Não esquecer.
Fazer ver a leveza da tempestade. Até doerem os dedos. Até chorar. Até rir. Até dormir descansada no teu peito azul.
Comer-te.
Orgasmo.
Não esquecer. (Patrícia Baltasar)

Tenho os Olhos Negros de Tanto Assistir


Escrevo-te porque não sei de ti, porque o meu lugar é demasiado certo, porque não me perco mais.

 Um leve fio do teu cabelo para me levar. Um homem disse que só se caminha andando. 

O meu caminho é o teu cabelo na minha casa. 

Os passos que deixaste para trás e que eu sigo. Que eu sigo.



 Porque o meu corpo é muito mais digno 

 agora 

 que tu lhe tocaste.



(Patrícia Baltasar )