sábado, 27 de outubro de 2018

HÁ NA INTIMIDADE UM LIMIAR SAGRADO


Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor –
mesmo que no silêncio assustador
se fundam os lábios e o coração se rasgue de amor.
Onde a amizade nada pode
nem os anos da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.
Quem corre para o limiar é louco,
e quem o alcançar é ferido de aflição.
Agora compreendes porque já não bate,
sob a tua mão em concha, o meu coração.

(Anna Akhmátova )

Arte de Bogdan Prystrom

MISTÉRIO


O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.

(Affonso Romano de Sant’Anna)


A lembrança dos teus beijos
Inda na minh’alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desaparecido
Revive numa saudade!

Florbela Espanca
Foto de Olivia Bee

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

ENVOLVE-ME, COMO SE AS TUAS MÃOS FOSSEM ASAS DE ANJO


Que os teus braços me envolvam como se as tuas mãos na minha cintura fossem asas de anjo. Toca-me mansamente e leva-me ao som da melodia sedutoramente envolvente. Leva-me para espaços inebriantes onde as tuas mãos me amparam nos sons musicais suaves e entontecedores que nos cadenciam os passos ao ritmo que nos leva, sem gritos, sem memórias, sem apelos que provocam e seduzem como se o ontem não tivesse acontecido.
Há tanto ritmo no meu corpo e há tanta sedução em ti. Vem comigo alegrar a vida ao compasso da melodia que nos une, quero ser a rosa que te prende com a sua fragrância. A valsa parou e nós paramos, sem som e sem magia sentimos a paixão que nos segreda. Comove-me a ligeireza do teu toque acetinado,mas não há, efectivamente, amor maior do que aquele que nos sabe agarrar, prender, enfeitiçar com um sorriso, um olhar e um toque quase imperceptível que nos abre o coração.

(Maria Elvira Bento)

terça-feira, 21 de agosto de 2018


com passos de nevoeiro saíste de mim e disseste
agora vou morrer noutro corpo
para que nunca mais tenha na minha pele o pânico
das madrugadas que me levavam ao remorso
de acordar no mais fundo de ti

saíste com passos de nevoeiro
e disseste desculpa ser assim
e eu nem respondi porque sabia
que não eras tu que desaparecias mas apenas
o que em teu nome um dia tinha vindo
para que eu não morresse tão longe do lugar do amor

(Alice Vieira)- Poema do livro "Dois Corpos Tombando na água"

Fotografia de: Black White


Não tardará a chegar ao fim
 este agosto que te viu passar 
 com a luz a teus pés. 
 Somos eternos, dizias.
 Eu pensava antes na danação da alma
 ao faltar-lhe o alimento que lhe trazias.
 Agora a cidade
 vive do peso incomensuravelmente morto
 dos dias sem a tua presença. 
 Deixo a mão correr sobre o papel 
 tentanto captar o eco de uma palavra, um sinal, 
 e quem em qualquer parte cintila,
 e confia ao vento o segredo da nossa tão precária eternidade.

(Eugénio de Andrade)

Arte de: karen Hollingsworth

sábado, 30 de junho de 2018

SOU A TUA CASA


Sou a tua casa, a tua rua, a tua segurança, o teu destino. Sou a maçã que comes e a roupa que vestes. Sou o degrau por onde sobes, o copo por onde bebes, o teu riso e o teu choro, o teu frio e a tua lareira. O pedinte que ajudas, o asilo que te quer acolher. Sou o teu pensamento, a tua recordação, a tua vontade. E também o artesão que para ti trabalha, o medo que te perturba e o cão que te guia quando entras pela noite. Sou o sítio onde descansas, a árvore que te dá sombra, o vento que contigo se comove. Sou o teu corpo, o teu espírito, o teu brilho, a tua dúvida. Sou a tua mãe, o teu amante, o marfim dos teus dentes. E sou, na luz do outono, o teu olhar. Sou a tua parteira e a tua lápide. Os teus vinte anos. O coração sepultado em ti. Sou as tuas asas, a tua liberdade, e tudo o que se move no teu interior. Sou a tua ressaca, o teu transtorno, o relógio que mede o tempo que te resta. Sou a tua memória, a memória da tua memória, o teu orgulho, a fecundação das tuas entranhas, a absolvição dos teus pecados. O teu amuleto e a tua humildade. Sou a tua cobardia, a tua coragem, a força com que amas. Sou os teus óculos e a tua leitura. A tua música preferida, a tua cor preferida, o teu poema preferido. Sou o que significas para mim, a ternura que desagua nos teus dedos, o tamanho das tuas pupilas antes e depois de fazer amor. Sou o que sou em ti e o que não podes ser em mim. Sou uma só coisa. E duas coisas diferentes.

(Joaquim Pessoa)- in "Ano Comum"