segunda-feira, 4 de novembro de 2013


Sou um presente de que ninguém fala
quando não estou abraçado à parte que me completa
quando não entrelaço os meus dez dedos nos teus
quando sou faísca sem lume
e um negrume...

mais negro que a própria noite
gato sem telhado
sombra sem destino

Sou um presente sem futuro
uma ave sem rumo
uma seta apontada ao peito
de um pássaro em pleno voo

Se me escondo?
Se tenho medo?
Nada disso!
Tudo vale a pena por um minuto ao teu lado
e só por isso
sou feliz do mesmo jeito!

(são reis)
251013

OUSA...


Navegando nas ondas do teu corpo,
sei que aportarei ao ‘Cais da Perfeição’!

Acostarei o meu coração ao teu...

e os atarei, com Laços de Afeição !

Farei deles um livro aberto
espelhando ao mundo o absurdo
o absorto
e o esperto,
que a vida,
por ser ladina
me ensina
e
me põe a descoberto

... e quero mergulhar nas ondas do teu corpo
pensando mesmo
que nunca saberei, nelas navegar

Mas teimo!

E algum dia, com tanta teimosia
hei-de aprender, a nele navegar

Aiiiii ! … e quando bem o souber fazer
e em cima das ondas me sustiver,
dir-te-ei como ousares p'ra me beijares
sem qu' eu tenha que te repreender

Irás gostar dos meus beijos,
dos meus carinhos e dos meus desejos … (vais ver) !

Navega, tu também, nas ondas do meu corpo !

Experimenta

Ousa viver
e
navegarás nele ...

até eu morrer !

(Magá Figueiredo)
(todos os direitos reservados)
imagem Google

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

SÍTIO EXATO


Sei que não acaba
o teu prazer,
nem o meu.

Alguém
ama connosco
e nos leva
ao sítio exacto
das estações.

Nem o sono
depois nos pertence,
quinhão de outros
herdado após amarem.

António Osório, in 'O Lugar do Amor'

AMOR


o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha. ...


as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

(José Luís Peixoto) in "A Casa, A Escuridão"


PRINCÍPIO DO PRAZER


à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"


JÁ NÃO VIVI, SÓ PENSO


Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada: ...

de nuvens, de crepúsculos, de vento.

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.

Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,

ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.

(Fernanda de Castro) in "E Eu, Saudosa, Saudosa


ESCUTA, AMOR


Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.

Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.

Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti, existe também à nossa volta quando estamos juntos. E agora estamos sempre juntos. O meu rosto e o teu rosto, fotografados imperfeitamente, são moldados pelas noites metafóricas e pelas manhãs metafóricas. Talvez outras pessoas chamem entendimento a essa certeza, mas eu e tu não sabemos se existem outras pessoas no mundo. Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos. Agora, somos uma única rocha, uma única montanha, somos uma gota que cai eternamente do céu, somos um fruto, somos uma casa, um mundo completo. Existem guerras dentro do nosso corpo, existem séculos e dinastias, existe toda uma história que pode ser contada sob múltiplas perspectivas, analisada e narrada em volumes de bibliotecas infinitas. Existem expedições arqueológicas dentro do nosso corpo, procuram e encontram restos de civilizações antigas, pirâmides de faraós, cidades inteiras cobertas pela lava de vulcões extintos. Existem aviões que levantam voo e aterram nos aeroportos interiores do nosso corpo, populações que emigram, êxodos de multidões famintas. E existem momentos despercebidos, uma criança que nasce, um velho que morre. Dentro de nós, existe tudo aquilo que existe em simultâneo em todas as partes.

Questiono os gestos mais simples, escrever este texto, tentar dizer aquilo que foge às palavras e que, no entanto, precisa delas para existir com a forma de palavras. Mas eu questiono, pergunto-me, será que são necessárias as palavras? Eu sei que entendes o que não sei dizer. Repito: eu sei que entendes o que não sei dizer. Essa certeza é feita de vento. Eu e tu somos esse vento. Não apenas um pedaço do vento dentro do vento, somos o vento todo.
    Escuta,
    ouve.
    Amor.
    Amor.

José Luís Peixoto) in 'Abraço'