quarta-feira, 17 de abril de 2019

NADA É CERTO

Ninguém avança pela vida em linha recta. 
Muitas vezes, não paramos nas estações indicadas no horário.
Por vezes, saímos dos trilhos. Por vezes, perdemo-nos, ou
levantamos voo e desaparecemos como pó.
As viagens mais incríveis fazem-se ás vezes sem se sair 
do mesmo lugar. No espaço de alguns minutos, certos indivíduos
vivem aquilo que um mortal comum levaria toda a sua vida a viver.
Alguns gastam um sem número de vidas no decurso da sua estadia cá em baixo.
Alguns crescem como cogumelos, enquanto outros ficam inelutavelmente
para trás, atolados no caminho.
Aquilo que, momento a momento, se passa na vida de um homem é para sempre insondável.
É absolutamente impossível que alguém conte a história toda por muito limitado que seja
o fragmento da nossa vida que decidamos tratar.

(Henry Miller) - in, "O Mundo do Sexo"
Arte de Alberto Seveso


quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Por vezes, julgo-me especial. penso: sou especial. E acredito.
Nada de extraordinário, essa especialidade. É apenas uma consciência

não muito racional que por vezes vem e se insinua, murmura junto ao ouvido: tens, em ti, lá dentro,
lá fundo, algo para dar. Algo que até pode ser muito. Mas algo, para oferecer. Quero dar, sinto que posso dar. Nem sei o quê, na verdade não importa muito. Poderá ser apenas companhia ou compreensão ou carinho ou amor. Mas quero tanto dar. provocar sorrisos. ou até recolher lágrimas (as lágrimas são sempre pedaços de alma, provas de libertação, de entrega, de confiança; rastos de amor. Gostaria de andar pelo mundo e provocar choro; então recolheria as lágrimas, e com elas formaria um oceano, um novo oceano. E esse oceano, constituído por pedacitos das almas de todos os homens, formaria uma alma gigantesca, que seria a alma do mundo; que seria, em simultâneo, de todos e todos.)
É isso que penso, que desejo: apetece-me dar; e sinto que passo. Depois, olho em redor, pergunto: mas quem receberá? (Novamente: uma cortina.) Muitas vezes, sinto-me pateta: como se fosse um daqueles loucos que percorrem as ruas das cidades com tabuletas penduradas ao peito, anunciando o fim do mundo; a minha tabuleta diria: dá-me amor. E andaria pelas cidades, exibindo-a, esfregando-a nos olhos de quem passasse. para nada; porque ninguém diria: dá-me amor, que eu preciso.
E então, penso: não, não sou especial. E acredito.

(Excerto de um texto do livro"Gastar Palavras"  de Paulo Kellerman)

Arte: Solly Smook

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

DAVA A VIDA PARA TE APERTAR CONTRA O MEU PEITO

Nunca te vira tão linda e sedutora ao mesmo tempo como ontem à noite. Dava a vida para te apertar contra o meu peito. Diz-me, era o amor que eu te inspiro que te fazia assim tão bela? Seria a paixão que me abrasa que te tornava tão atraente a meus olhos? Bem viste: não podia deixar de olhar para ti, nem de beijar a candeiazinha de oiro. Quanto tu saíste tive vontade de me prosternar a teus pés e de te adorar como a uma divindade. Ah! Se tu me quisesses metade do que eu te quero! Deste volta à minha pobre cabeça; repara no mal que me fizeste querendo-me como me queres. Às oito, esperar-te-ei numa ansiedade.

(François Chateaubriand) - in ' Carta à Condessa de Castellane (1823)'

sábado, 27 de outubro de 2018

HÁ NA INTIMIDADE UM LIMIAR SAGRADO


Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor –
mesmo que no silêncio assustador
se fundam os lábios e o coração se rasgue de amor.
Onde a amizade nada pode
nem os anos da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.
Quem corre para o limiar é louco,
e quem o alcançar é ferido de aflição.
Agora compreendes porque já não bate,
sob a tua mão em concha, o meu coração.

(Anna Akhmátova )

Arte de Bogdan Prystrom

MISTÉRIO


O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.

(Affonso Romano de Sant’Anna)


A lembrança dos teus beijos
Inda na minh’alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desaparecido
Revive numa saudade!

Florbela Espanca
Foto de Olivia Bee

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

ENVOLVE-ME, COMO SE AS TUAS MÃOS FOSSEM ASAS DE ANJO


Que os teus braços me envolvam como se as tuas mãos na minha cintura fossem asas de anjo. Toca-me mansamente e leva-me ao som da melodia sedutoramente envolvente. Leva-me para espaços inebriantes onde as tuas mãos me amparam nos sons musicais suaves e entontecedores que nos cadenciam os passos ao ritmo que nos leva, sem gritos, sem memórias, sem apelos que provocam e seduzem como se o ontem não tivesse acontecido.
Há tanto ritmo no meu corpo e há tanta sedução em ti. Vem comigo alegrar a vida ao compasso da melodia que nos une, quero ser a rosa que te prende com a sua fragrância. A valsa parou e nós paramos, sem som e sem magia sentimos a paixão que nos segreda. Comove-me a ligeireza do teu toque acetinado,mas não há, efectivamente, amor maior do que aquele que nos sabe agarrar, prender, enfeitiçar com um sorriso, um olhar e um toque quase imperceptível que nos abre o coração.

(Maria Elvira Bento)