quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

UM DIA VIREI


Um dia virei
colado a um verso, embrulhado
numa folha, dobrado
a um canto,
para que os teus lábios
me ciciem, os teus olhos
me beijem
e eu não saiba
e eu não sinta.


(Albano Martins)
Arte de: Miriam Briks

INDIFERENÇA


Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado
passo. E eu, baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto,
pudéssemos varrer nosso passado.
Passo esquecido de te olhar, coitado!
Vais, coitada, esquecida de que existo.
Como se nunca me tivesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado
Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,
se quando passo, teu olhar me alcança
se meus olhos te alcançam quando vais.
Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.
Volta-nos sempre a pálida lembrança.
Daqueles tempos que não voltam mais!


(Guilherme de Almeida)

HOJE



Alguém que andava a ver se te esquecia 
 e a cuja memória, por isso mesmo, 
 regressavas como a melodia de uma canção da moda 
 que todos trauteiam sem querer, 
 ou como a frase de um anúncio ou um lema; 
 alguém assim, agora, 
 provavelmente
 (seguramente) sem o saber, 
 começou, finalmente, a esquecer-te. 
 Hoje és menos. 

(Roberto Fernández Retamar)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017


Faz tempo que meu nome é Distância
e meu sobrenome é Saudade...

(Augusto Branco)

PRENDA


Dizes-me que o silêncio 
está mais próximo da paz do que os poemas
mas se como prenda

te trouxesse o silêncio 
(pois eu conheço o silêncio) 
dir-me-ias 
Isto não é o silêncio
isto é mais um poema
 
e devolver-mo-ias

(Leonard Cohen)


As recordações não povoam a nossa solidão, como se costuma 
dizer; antes pelo contrário, tornam-se mais profundas.

(Gustave Flaubert)

DIZ-ME O TEU NOME


Diz-me o teu nome – agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão
com os teus dedos – como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,
como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro – assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o
nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.
Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo – um nome sim
.

(Maria do Rosário Pedreira)
Photography: Aroslaw Datta